Neste mês em que se completa um ano da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, um lançamento editorial se destaca pela força do traço, da escuta e da denúncia: “Água até aqui”, de Pablito Aguiar. Mais do que uma obra artística, trata-se de uma reportagem em quadrinhos que dá rosto e voz às vítimas da enchente de 2024 e propõe uma reflexão urgente sobre os limites que ultrapassamos em nossa relação predatória com a Terra. A obra é também um chamado à ação — e à memória.
Entre caixas e traços, um presente que conta o presente
Estive recentemente em Porto Alegre para ajudar meu filho mais velho na mudança de casa. No meio das caixas, das roupas dobradas e dos livros empilhados, tive a grata surpresa de receber dele um presente inesperado: o interessante quadrinho “Água até aqui”, recém-lançado em maio de 2025. O momento não poderia ser mais simbólico – exatamente um ano após a enchente monstruosa que devastou o estado, transformando a geografia, a vida e a memória de milhares de pessoas.
Essa História em Quadrinhos é uma potente reportagem visual escrita e desenhada por Pablito Aguiar, nascido em Alvorada (RS) e atualmente radicado em Altamira, no coração da Amazônia. Como repórter-quadrinista e correspondente da plataforma SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo, Pablito acompanhou de perto os desdobramentos da tragédia e fez o que sabe fazer como poucos: escutar e desenhar. Foi exatamente isso que ele fez ao longo de meses: ouviu vítimas, viu de perto a destruição, e converteu esses testemunhos em imagem, com o cuidado ético e a sensibilidade de quem também viveu o trauma como gaúcho.
Depoimentos que transbordam
“Água até aqui – Histórias de Luta, Sobrevivência e Recomeço na Maior Tragédia Climática do Rio Grande do Sul” reúne 14 reportagens em quadrinhos, originalmente publicadas em SUMAÚMA, e agora transformadas em um livro-reportagem com texto de quarta capa de Eliane Brum e posfácio da jornalista e ambientalista Jaqueline Sordi.
São histórias reais e duras, mas que se equilibram sobre a ternura e a empatia. Maninho e sua mãe, Vanja, que perderam tudo pela segunda vez. Matheus, que mesmo sem nada, queria salvar os outros. Isis, que saiu às pressas para resgatar ovelhas e cachorrinhos. E o cavalo Caramelo, que se salvou porque subiu no telhado – e que talvez, se pudesse falar, nos diria mais do que conseguimos compreender.
A obra resgata, com força e delicadeza, a importância da memória como instrumento de transformação. Como afirma o próprio autor:
“O que passamos foi um pesadelo. Todos nós do Rio Grande do Sul, de alguma forma, fomos atingidos. E ouvir histórias tão tristes não foi fácil. Mas entendi que era preciso registrar. Que jornalismo é fazer memória – e agora, com “Água até aqui”, é fazer com que essa memória se transforme em ação para que essa tragédia não volte a acontecer.”
Um aviso ignorado, uma natureza avisando
O livro não apresenta a enchente como tragédia isolada ou mero capricho da natureza. Ele a insere num contexto histórico e ambiental mais amplo. Os dados são claros: entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu mais de 22% de sua vegetação nativa. Banhos de asfalto, verticalização, destruição dos banhados, monocultura, mineração. Um modelo de desenvolvimento que transforma a Terra em recurso, e a água em vingança. “Não foi falta de aviso. Foi excesso de desprezo”, afirma uma das páginas mais impactantes.
Em uma das passagens mais contundentes do livro, resgata-se uma advertência feita há décadas por José Lutzenberger, ambientalista gaúcho de projeção internacional: “Estamos literalmente consumindo o futuro.” A frase, dita em 1974, aparece no livro como alerta premonitório ignorado por sucessivas gerações de governantes e empresários. O quadrinho mostra que o colapso ambiental de 2024 não foi acidente nem surpresa — foi a consequência direta de escolhas políticas e econômicas sustentadas por esse desprezo histórico pelos limites da natureza.
Mas o que sobra quando a água recua? O som não é o que permanece. É o silêncio. Um silêncio mais alto do que helicópteros, sirenes e gritos. Um silêncio espesso, que pesa e grita. Um silêncio que pede escuta – e memória. Essa é a força de “Água até aqui”.
O legado do jornalismo em quadrinhos
Esse tipo de quadrinho – a reportagem em quadrinhos – tem raízes fortes no jornalismo gráfico internacional, e encontra em Joe Sacco seus maiores expoentes. Sacco é autor de clássicos como Palestina e Gorazde – Zona Protegida, nas quais documenta conflitos com rigor narrativo e sensibilidade visual. Pablito Aguiar se inscreve nessa linhagem, mas com uma assinatura própria: ele é do Sul profundo do Brasil, do chão encharcado pela lama da destruição, e da floresta onde hoje continua desenhando a dor e a esperança.
O lançamento do livro foi no dia 10 de maio de 2025, na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre – espaço que também sofreu com as águas. A parceria entre SUMAÚMA e a Editora Arquipélago deu origem à publicação física. O evento reuniu o autor e personagens retratados nas reportagens, em um gesto de resistência, partilha e reconexão.
Receber esse quadrinho das mãos do meu filho, justamente em Porto Alegre, foi um gesto pequeno, mas cheio de significado. Como pai, como cidadão, como alguém que acredita na força da escuta e da palavra – inclusive a palavra desenhada – senti que esse presente era também um convite: a não esquecermos, a recomeçarmos, e a escutarmos, enfim, a Terra.
Páginas e pistas alagadas: uma história de superação compartilhada
A leitura de “Água até aqui” não apenas me conectou com as histórias de luta e resiliência diante da maior tragédia climática do Rio Grande do Sul, mas também despertou lembranças vívidas de um momento marcante que vivi pessoalmente. No dia 21 de outubro de 2024, embarquei em um voo de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, exatamente quando o Aeroporto Salgado Filho reabriu após dias de paralisação devido às enchentes devastadoras. A emoção de ver aquele avião pousando suavemente na pista, com o piloto exibindo orgulhosamente a bandeira do Rio Grande do Sul pela janela, foi indescritível. A palavra “Rio Grande do Sul” estampada na fuselagem ressoava como um grito de superação, simbolizando a força e a união de um povo que, mesmo diante das adversidades, se mantém firme e resiliente.
Relatei essa experiência, tão simbólica e emocional, no artigo que publiquei neste Diário do Rio, intitulado “Um pouso de esperança: a volta dos voos ao Salgado Filho após as enchentes”, que pode ser lido neste link: https://diariodorio.com/um-pouso-de-esperanca-a-volta-dos-voos-ao-salgado-filho-apos-as-enchentes/.
Essa experiência pessoal se entrelaça com as narrativas apresentadas no livro, onde cada relato em quadrinhos retrata não apenas a dor e as perdas causadas pela enchente de 2024, mas também a solidariedade e a capacidade de recomeçar. Assim como os personagens de “Água até aqui”, que enfrentaram a destruição com coragem e esperança, aquele voo representou para mim um símbolo de renascimento e continuidade. A obra de Aguiar, ao dar voz às vítimas e aos heróis anônimos da tragédia, reforça a importância de manter viva a memória coletiva, transformando o trauma em aprendizado e ação para um futuro mais consciente e preparado.
Ficha técnica do livro:
Título: Água até aqui – Histórias de Luta, Sobrevivência e Recomeço na Maior Tragédia Climática do Rio Grande do Sul
Autor e ilustrador: Pablito Aguiar
Texto de orelha e quarta capa: Eliane Brum
Posfácio: Jaqueline Sordi
Editora: Arquipélago em parceria com SUMAÚMA
Ano: 2025
Páginas: 136
Formato: Reportagem em quadrinhos